Virou o assunto. Ninguém sabia direito o que estava acontecendo — lembra Pereira.
Dias depois, ele tomou conhecimento, pelas redes sociais, da existência de um suposto plano de resgate dos líderes da facção. Na ressaca de uma eleição marcada pelas fake news, relatos fantasiosos começaram a pipocar no WhatsApp. Um dele, escrito nos moldes de informes oficiais e supostamente assinado pelo serviço de inteligência do governo estadual, alertava os moradores sobre a possibilidade de explosões em agências bancárias, postos de combustível e na Santa Casa. O pânico foi generalizado. Sua mulher, professora de catequese, chegou para dar aula e não havia nenhuma criança.
Com quase 40 mil habitantes, Presidente Venceslau é uma cidadezinha um tanto peculiar. Além de abrigar duas penitenciárias, é vizinha de uma terceira, a de Presidente Bernardes, onde fica a chamada tranca-dura, para onde vão os presos quando estão no “castigo”. Aos sábados, Venceslau é invadida por mais de uma dezena de ônibus que chegam com as mulheres dos presos para a visita semanal. Esse turismo carcerário movimenta padarias, mercados, hotéis e transporte.
Apesar da familiaridade com o tema da segurança pública, a atual invasão das tropas é inédita. De repente, as siglas e nomes das polícias especializadas paulistas – Coe, Gate, Rota, Choque, Cavalaria – entraram para o vocabulário local. Mais de 200 homens fardados chegaram para reforçar a segurança. Por determinação judicial, o aeroporto, que só comporta pequenas aeronaves particulares, foi fechado e teve a pista interditada por carros e motos apreendidos. Canhões de luz varrem o céu à noite, à procura de drones da facção. Sem nenhuma explicação oficial do governo de São Paulo, a população ficou perdida.
A diretora de escola Eliza Andrade do Nascimento, de 66 anos, mora entre as duas penitenciárias da cidade. De repente, sua casa virou rota do Águia, o helicóptero da PM. Um conhecido com acesso à cadeia confidenciou sobre o possível plano de resgate. O deputado federal major Olímpio, natural de Presidente Venceslau, agora eleito ao Senado pelo mesmo PSL de Jair Bolsonaro, divulgou que a soltura envolveria a contratação de forças paramilitares iranianas, nigerianas e ex-combatentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) – o plano, segundo autoridades ouvidas pelo GLOBO, mencionava apenas africanos.
Na dúvida sobre a gravidade da ameaça, uma das quatro filhas de Eliza, que mora na capital, pediu que os pais fossem passar uns dias em sua casa. Antes de dar uma resposta, Eliza desenvolveu um método próprio para se certificar de que estava segura. Passou a observar se havia alguma alteração na rotina de familiares de policiais de alta patente da cidade. Ao notar que os filhos do capitão e do major continuavam frequentando as aulas, concluiu que poderia permanecer em Venceslau.
Sabemos que alguma coisa está acontecendo. Verdadeiramente, está. Mas resolvi confiar. Se as autoridades e seus familiares continuam aqui, é porque estão no controle – diz Eliza.
Clima de apreensão
O clima de apreensão existe, mas os moradores não se deixaram abalar. Ao cair da tarde, a população continua com suas caminhadas habituais numa pista que leva até os arredores das penitenciárias e do aeroporto. Alguns se reúnem para tomar tereré, uma bebida gelada feita de erva-mate, e jovens enchem as calçadas em torno da mais nova modinha do interior: o narguilé, um cachimbo oriental com água, para fumo aromatizado.
A presença de homens armados e mal-encarados é a alteração mais gritante na paisagem. Em um dia andando pela cidade, a reportagem cruzou cinco vezes com o Choque, uma com a Rota, duas com a cavalaria, além de incontáveis encontros com as polícias militar e ambiental. A situação atípica impôs ali uma espécie de pacto de silêncio. Nenhuma autoridade aceita falar publicamente a respeito.
Com os hangares fechados e a pista de pouso e decolagem interditada, o aeroporto não funciona desde o dia 10 de outubro. Um empresário da cidade, com uma aeronave à venda, perdeu uma oportunidade de negócio. O possível comprador foi a Venceslau para testar o avião, mas não pôde tirá-lo dali. O empresário chegou a pedir a liberação na Justiça, mas não conseguiu. Corre na cidade que ele deixou de ganhar quase meio milhão de reais.
Insatisfeita também está uma parte dos policiais forasteiros. Quando o governo de São Paulo os despachou para Presidente Venceslau, seus superiores imaginavam que seria uma situação emergencial, de cerca de duas semanas. Os mais de 200 homens estão em alojamentos provisórios – um grupo em um ginásio de esportes, outro no centro de exposições agropecuárias. Um PM que participa da operação relata que um local adequado para menos de 20 homens está abrigando 50. Na última terça-feira, num calor de 37 graus, havia um corre-corre para conseguir ventiladores e beliches para os hóspedes. Oficialmente, ainda não se sabe a data em que as forças de segurança sairão do município. Mas já há escala de trabalho pronta para até meados de janeiro.
Autor de plano
O homem por trás do plano de resgate que abalou Presidente Venceslau é Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, o maior fornecedor de armas e drogas para o PCC, segundo a polícia brasileira. Sob condição de anonimato, a informação foi confirmada ao GLOBO por integrantes dos serviços de inteligência da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), Ministério Público (MP) de Polícia Militar (PM).
Amigo de infância de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, chefe da facção, Fuminho não é integrante do PCC, mas há décadas se tornou um dos principais aliados da organização criminosa. Em fevereiro passado, foi apontado pela polícia como executor do plano de assassinato de outras duas lideranças importantes: Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca. Foragido desde janeiro de 1999 do extinto presídio do Carandiru, Fuminho se estabeleceu na Bolívia.
O recente plano de resgate das lideranças do PCC envolveria três equipes com um total de 80 mercenários, possivelmente africanos, de acordo com investigadores. Uma delas bombardearia a estação de distribuição de energia elétrica e o batalhão da cidade, de modo que os policiais não conseguissem sair para dar reforço. Uma segunda fecharia os dois sentidos da Rodovia Raposo Tavares, onde se encontra a Penitenciária 2, de Presidente Venceslau, que abriga os líderes da facção, com caminhões em chamas. A outra invadiria a prisão a fim de libertar dez detentos, além de distribuir armas para que outros tentassem a fuga por conta própria. O plano ainda contaria com o assassinato de desafetos de Fuminho, o uso de lança-mísseis e metralhadora ponto 50, capaz de derrubar aeronaves, além de dois helicópteros.
Os detalhes sobre o planejamento saíram da própria penitenciária de Venceslau. Informantes presos, os chamados caguetas, repassaram aos agentes penitenciários as intenções de fuga. Não há interceptação telefônica, bilhete, mapa ou qualquer prova mais concreta a respeito do projeto de resgate, segundo representantes dos serviços de inteligência ouvidos pelo GLOBO. A ausência de materialidade chamou atenção de um pequeno grupo que trabalha no combate ao crime organizado. No privado, alguns investigadores dizem acreditar na existência do plano, mas admitem certo exagero em torno dos detalhes. Outros afirmam que o projeto está sendo usado politicamente.
Não é a primeira vez que líderes do PCC tentam fugir da penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau. Em fevereiro de 2014, o próprio Fuminho foi apontado como financiador do mais audacioso plano de resgate de Marcola. Os bandidos montaram uma base em Porto Rico, no Paraná, de onde deflagrariam uma operação para tirar o chefe da facção e outros três líderes detidos com ele. O plano foi frustrado antes de acontecer.
O PCC, por outro lado, já teve êxito em grandes fugas. Em setembro, o bando invadiu um presídio de segurança máxima em João Pessoa, na Paraíba, para libertar quatro homens – 92 acabaram fugindo. No mesmo mês, a organização criminosa foi responsável pela fuga de 29 detentos em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná.
Transferência:
O recente plano de resgate dos líderes do PCC fez ressurgir a discussão sobre a transferência dos chefes da organização criminosa para presídios federais. Representantes do Ministério Público se encontraram com o governador Márcio França (PSB) para tratar do assunto na última segunda-feira, dia 12. A reunião terminou sem consenso.
Segundo um dos presentes no encontro, França diz que o governo de São Paulo tem os presídios mais seguros do Brasil. Nos bastidores, a preocupação é outra: o risco de uma retaliação por parte da facção criminosa. As maiores crises na segurança pública do estado ocorreram em decorrência do protesto à transferência de presos. Em 2001, detentos de 29 penitenciárias iniciaram uma megarrebelião sob a coordenação do PCC. Em 2006, a intenção de remover 765 presos para prevenir outro grande motim deflagrou uma onda de violência no estado. Edifícios públicos e privados foram depredados e destruídos. Ônibus foram incendiados. Ao todo, 439 pessoas foram assassinadas com armas de fogo, entre civis e agentes públicos. A cidade de São Paulo parou.
É quase unanimidade entre policiais e promotores a ideia de que isolar a cúpula do PCC em penitenciárias federais, distantes de São Paulo, quebraria sua cadeia de comando e ajudaria a enfraquecê-lo. Os defensores da transferência dizem acreditar que o risco de uma retaliação existirá sempre. Assim, não adianta postergar a decisão.
Em 2016, a Polícia Civil de São Paulo recomendou ao governo a transferência de líderes da organização criminosa para presídios federais. Pouco antes, investigadores haviam descoberto que os advogados do PCC faziam dupla jornada como pombos-correio da facção. Depois que um juiz do interior não descartou a solicitação, o Tribunal de Justiça mudou para a capital a competência de julgar a causa. Em São Paulo, promotores reforçaram o pedido de transferência dos detentos, que foi indeferido em primeira e segunda instâncias. Um parecer assinado por Lourival Gomes, secretário de Administração Penitenciária de Alckmin, sugeria ao juiz manter os presos no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que prevê isolamento rigoroso, mas dentro do próprio estado. O ofício reconhece a liderança de Marcola no PCC, mas afirma não ser necessário transferi-lo. Ao longo do cumprimento de sua pena, Marcola já ficou seis vezes no RDD — e nunca deixou de liderar o PCC, segundo investigadores.
Na avaliação tanto da Polícia Civil quanto do Ministério Público, Marcola hoje está enfraquecido em decorrência das mortes ainda não explicadas de dois grandes quadros da facção. Ao mandá-lo para um presídio federal, o cálculo é de que ele poderia até perder a liderança.
O secretário Lourival Gomes mudou de ideia a respeito da remoção. Depois de anos irredutível em relação ao assunto, sua posição agora é favorável. O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, concordava com Gomes até o início do segundo turno da eleição. Agora partilha da mesma opinião de França: é contrário à ideia de mandar os chefes para fora. Se o pedido da promotoria for feito, será julgado pelo mesmo juiz que vetou a transferência no ano passado. Enquanto o imbróglio segue, advogados do Marcola estão dando plantão no Fórum de São Paulo. Querem um encontro com magistrado.